quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Família Rampanelli - Capítulo XXI - A religiosidade na Colônia Dona Isabel - 2ª Parte - Sem padres, sem Igrejas, mas com muita fé.

 

A população da Colônia Dona Isabel em 1876 já era de 800 pessoas, entre eles, tiroleses, italianos, alguns poucos brasileiros, franceses e alemães.

                        Os valores religiosos dos imigrantes vindos das pequenas vilas nas montanhas dos Alpes austríacos, onde a religião era cultivada intensamente, chegaram firmes e fortes nas montanhas da serra gaúcha e foram importantíssimos para ajudar a sublimar o meio que lhes era hostil na nova pátria.


                        Os tiroleses, assim como os demais italianos, eram muito religiosos, apegados a valores morais e conservadores, baseados em princípios religiosos cristãos, claros e rígidos, altamente influenciados pela história da região tirolesa/trentina, que esteve sob o domínio clerical dos Príncipes-Bispos que governaram a região por oitocentos anos. Por isso, a influência cultural da religião católica foi mais intensa naquela região.

            Os tiroleses trentinos que emigraram para o Brasil a partir de 1875, vieram católicos, sabiam de cor os mandamentos da lei de Deus e os ensinamentos da Igreja, edificando templos e resignando-se, nos problemas e dificuldades à vontade de Deus, sempre fizeram da religião uma razão da sua própria existência.

Sem padres, sem Igrejas, mas com muita fé

            Na floresta virgem, não havia igreja, nem padre. O imigrante teve que reconstruir um novo mundo religioso, bem como se adaptar e criar novos valores e modos de viver. Mas a devoção continuava a mesma do velho mundo. Em casa à noite rezava-se o terço (la corona), mas o dia de domingo era um problema, pois ele era completamente diferente daqueles domingos passados nas montanhas alpinas.

O Capitel San Giuseppe  na Linha Silva Jardim em Serafina Corrêa-RS, construído em 1928. É uma memória da fé, de vontade e de luta que o casal João e Joana Bordin deixaram para seus filhos, netos, bisnetos e demais descendentes. Imagem: Acervo pessoal do autor.

            Por falta de padres e de Igrejas nos primeiros tempos no Brasil, substituíram a missa dominical pela reza do terço, rezados nas capelinhas ou capitéis e também nas casas de famílias.

            Tudo era só saudade: de vestir os trajes de domingo; dos encontros e das conversas com vizinhos e amigos; da missa; dos tragos no boteco; das paqueras e dos namoros. Construir uma capela nos travessões era uma necessidade.

A origem das capelas

            As capelas criadas pelos pioneiros imigrantes oriundos da Itália/Áustria ao se estabelecerem no Brasil são produtos de uma vida religiosa sempre marcada por uma espiritualidade tridentina (Trento/Itália), porque baseada numa revisão do Missal Romano, seguindo orientações do Concílio de Trento.

             A Igreja Católica Romana, era totalmente ausente na região de colonização italiana na serra gaúcha, apesar de ser a Igreja oficial do Império Brasileiro, não tinha autonomia para criar paróquias e dar assistência aos que recém chegavam. Alguns padres jesuítas alemães visitavam eventualmente os colonos para celebrar os sacramentos.

            Os colonos imigrantes acostumados a uma vida religiosa intensa, tentaram por iniciativa própria, recriar o mundo religioso com o qual estavam acostumados na antiga pátria. Dom BAREA explica como os colonos iniciaram esse processo de reconstrução de seu mundo religioso de outrora.

            “Pouco a pouco e na medida que as condições materiais permitiam, os colonos começam a construir pequenos oratórios dedicados aos santos de suas localidades de origem e, nestas miseráveis igrejinhas, todas feitas com tábuas brutas, reuniam-se os colonos nos dias festivos”. (BAREA, 1925, apud ZUGNO, p. 419).

                                Apenas superadas as primeiras dificuldades de instalação na nova colônia, os colonos se reuniam para chegar a um acordo para construir uma pequena igreja. Na construção da capela, um colono fazia a doação do terreno, outros doavam pinheiros, muitos ofereciam seus serviços (mão de obra) para a construção e muitos outros faziam doações em dinheiro. A capela era construída em poucos dias, com troncos de pinheiros e tábuas, eram confeccionadas também as tabuinhas (scándole), usadas para cobrir a Igreja.

                                     Festa do Santo Padroeiro na Capela São José  - Linha 11 – Colônia Guaporé.

                        As capelas chegaram antes dos padres, construídas e mantidas pela organização comunitária dos moradores das linhas, servindo para atender as questões religiosas do colono imigrante abandonado pelo estado brasileiro e pela Igreja no interior da mata virgem, entre as montanhas da serra gaúcha.

                        A capela tornou-se o centro social, cultural e econômico das comunidades.

 Nas capelas, com o tempo e a melhoria das condições financeiras dos seus habitantes, outros espaços, foram sendo incorporados à igrejinha já existente, como o cemitério, o campanário, a escola e o salão comunitário. Esse conjunto de construções para atividades específicas é que deve ser entendido como capela, não apenas o espaço utilizado para as rezas e missas.

                        A necessidade dos imigrantes tiroleses e italianos de construir capelas, nos lembram o quanto vieram marcados pelo estado de Cristandade. Os espaços, os tempos, as atividades, a vida dos colonos sempre foram marcadas pela religião.

                        Com as capelas, o domingo, dia sagrado, a rotina da vida tinha outra ordem, menos trabalho, mais orações, melhores roupas e calçados eram usados, muita alegria através de canções, jogos, comida e muito vinho.

Capela da Linha Jansen em 1918.  Esse conjunto de Igrejinha, Campanário, Cemitério (ao lado da Igrejinha) e salão comunitário (nos fundos da Igreja) recebe o nome de Capela. Fonte: Museu Histórico Casa do Imigrante – Bento Gonçalves/RS.

A difícil escolha do santo padroeiro

                        Discutia-se tudo, desde qual o material a ser utilizado na construção (pedra, tijolo ou madeira) até a escolha do santo padroeiro. A confusão no travessão estava estabelecida, escolher o santo era um foco de conflito entre os colonos. Havia um exército de santos, uns podiam mais  que outros, não havendo acordo, se construía mais de uma capela no travessão, para agradar os dois santos preferidos.

                        Teve um caso de uma capela que precisou ser reconstruída, porque foi destruída por um vendaval, quando um colono sugeriu trocar o santo padroeiro. Indagado pelos outros do motivo da troca, disse: “parche quel li no l’é stá gnanca bon de tender la so cesa” (porque esse não foi nem capaz de cuidar de sua própria Igreja).

                        Depois, construía-se o cemitério, geralmente ao lado ou nos fundos da capela, depois o campanário e a compra dos sinos, a escola e por último o salão comunitário.

                        Essa vivência religiosa tornou possível a construção de um território simbólico de segurança e estabilidade visível nos capitéis, capelas e Igrejas e nas imagens dos santos padroeiros.

“Nostro prete” (nosso padre)

            Nos cultos e nas demais cerimônias religiosas a falta de padres, fazia com que fossem realizados por um leigo, escolhido pela comunidade. Para os colonos, esse líder religioso era conhecido como “nostro prete” (nosso padre) ou de “prete de scapoera” (padre da capoeira). O escolhido tinha que preencher alguns requisitos fundamentais: devia ser uma pessoa piedosa, dada a oração e conhecedora dos problemas da religião.

             A função do padre leigo era de dirigir a comunidade nas orações, assistir os moribundos, fazer as orações nos enterros e abençoar as casas e os objetos sagrados, símbolos da proteção divina, que os colonos desejavam ter em casa. O padre leigo benzia até a água, transformando-a em água benta.  Na maioria das vezes esse padre leigo era o preferido dos colonos a aqueles enviados pelo Bispo, pois estes só apareciam de vez em quando na comunidade.

            A religiosidade foi fundamental para lidar com as adversidades cotidianas. Pelas crenças e pelos ritos religiosos, lembravam-se, de onde tinham partido, da vida que levavam e quais eram seus objetivos.

O Capo-linea (o chefe do travessão)

                        Também nas comunidades os colonos faziam a escolha da autoridade civil e social, o chamado “capo-linea” (o chefe de travessão). Este representante escolhido também era obrigado a preencher certos requisitos para bem representar aquela comunidade. Era necessário que fosse alguém com liderança, objetivo e de temperamento conciliador para resolver os conflitos entre os membros da comunidade, desentendimentos por disputas de terras, invasão de plantações por parte de animais dos vizinhos ou do fogo que passara de um roçado para outro.

                        Os colonos cientes de sua autonomia evitavam recorrer às autoridades civis da colônia, receosos de não se fazer entender pelas dificuldades com a língua portuguesa e com desconhecimento das leis brasileiras. Quem apelasse para a Polícia, Juiz ou o Prefeito para resolver o problema era muito criticado.

O “soto-coa”

                        Era um funcionário da Prefeitura, nomeado como comissário para atuar junto aos colonos nas capelas. Foi a forma com que a administração civil achou para marcar sua presença na região. Pelo seu caráter subalterno à autoridade civil, os colonos o chamavam pejorativamente  de “soto-coa” (debaixo do rabo). Foi muito confundido com o “capo-linea (chefe do travessão), que era escolhido pelos colonos.

            O poder administrativo nas colônias era representado pelos diretores e demais funcionários, mas o poder mais efetivo exercido diariamente sobre o colono imigrante foi o da Igreja Católica que teve papel fundamental na formação social, cultural e política das colônias de imigração. Os sacerdotes foram as autoridades mais respeitadas e sua atuação, se deu como poder disciplinador na organização sócio cultural dos imigrantes.

            Se os conflitos não fossem resolvidos na comunidade, apelava-se, primeiro ao padre, antes do Delegado, Prefeito ou Juiz, a quem se respeitava como uma autoridade enviada por Deus. A palavra do padre na maioria das vezes era definitiva. Alguns padres, que por muitos anos atuaram em uma comunidade, muitos deles vindos da Itália, são recordados até hoje, por sua piedade e sabedoria de vida, até pela sua habilidade política, capaz de, em muitas vezes dar razão, a ambas às partes.


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